Nos meus contactos com pessoas ligadas à indústria relojoeira poucas vezes encontrei tanta humildade como quando conheci, este verão, Jeanne-Valentine Ulrich. Desconhecia completamente o seu nome mas não o seu trabalho, pois ela é a responsável pela gravação da mão do célebre modelo FFC de François-Paul Journe.
Oito horas da manhã e estávamos a caminho para mais uma experiência no extraordinário sistema de caminhos de ferro suíços. O destino para a entrevista com Jeanne-Valentine Ulrich era Agenhor, em Meyrin. Perguntei ao meu companheiro de viagem se não haveria algum engano ao que ele confirmou que a gravadora suíça, independente desde 2019, realmente tinha o seu atelier em Agenhor.
Agenhor é uma palavra que repito vezes sem conta aos meus amigos. É um local encantado de onde saem alguns dos mais extraordinários e complexos movimentos relojoeiros e que tive o prazer de visitar há anos atrás. O que antes era uma sala de reuniões transformou-se agora no espaço de trabalho de Jeanne-Valentine Ulrich – é maravilhoso saber que mais um talento encontrou um espaço entre outros talentos de áreas distintas. Fixem bem o nome Agenhor!
O dia prometia e se o meu companheiro de viagem havia descoberto mais uma preciosidade dos bastidores da indústria relojoeira, eu sabia onde era Agenhor o que não é de desprezar, pois é um local tão discreto que podemos passar mesmo em frente e não perceber que é ali.
— Mas vocês conhecem-me? Fiquei surpreendida por me quererem entrevistar.
São sempre estas pessoas as mais humildes. São sempre estes talentos, que se questionam a cada momento os que acrescentam mais poesia e beleza à relojoaria. Jeanne-Valentine transcende, neste aspeto, a mera artesã. Não há artista que não coloque em causa o seu talento e o seu trabalho, que não oscile entre a certeza da sua visão e as constantes dúvidas sobre ser merecedor de reconhecimento alargado.
Jeanne-Valentine Ulrich é uma talentosa artista e artesã, mas também e, acima de tudo, profundamente humana.
Confessámos que foi através do modelo FFC de François-Paul Journe que chegámos ao seu nome e a consequente pesquisa sobre o seu trabalho revelou uma trajetória impressionante: sete anos na Vacheron Constantin, dois anos com o gravador Jean-Bernard Michel e, de 2013 a 2019, colaborou com diversos ateliers, incluindo os Caderniers de Genève onde, por exemplo, executou o mostrador da edição de parceria entre Laurent Ferrier e o artista Hervé di Rosa.
Com um currículo tão vasto e rico, por que é que é tão difícil encontrar referências a Jeanne-Valentine Ulrich?
A resposta é simples: recorrer a serviços externos e omitir esse facto em nome do célebre mito do "nós fazemos tudo in-house" é um modus operandi bastante difundido entre algumas marcas.
Sempre que os departamentos de marketing me contam essa história respondo com um ostensivo revirar de olhos.
Não sou ingénuo ao ponto de pensar que mitos e narrativas não são importantes para uma marca e consequentemente para o produto relógio. Independência e autonomia são conceitos mitológicos na indústria. Contudo, assim como no passado os relojoeiros isolados nos vales não sobreviviam sem parcerias, o mesmo vale hoje.
Como bem ilustrou certa vez Jean-Marc Wiederrecht (o fundador de Agenhor) numa conversa: "Por é que vou começar a fazer parafusos se ao meu lado há um fabricante que os faz há décadas? Os dele serão melhores e assim potencia-se a produção horizontal e os pequenos fornecedores da indústria."
Essa é a diferença entre o mito da produção vertical e o inevitável recurso a serviços externos, que é afinal a realidade dessa mesma indústria. Algumas marcas celebram as suas parcerias; outras escondem-nas. Se isso me irrita? Sim, bastante.
Não serei eu o justiceiro solitário a repor "verdades" numa indústria que, por vezes, consegue ser muito opaca. Contudo dá-me um particular prazer destacar estes maravilhosos artistas, artesãos e criadores, que tantas vezes fazem carreira na sombra sem nunca poderem dizer: "Aquilo que está ali é uma realização minha."
Felizmente, este não foi o caso do FFC de François-Paul Journe. O mestre relojoeiro marselhês foi o primeiro a louvar e publicitar o trabalho de Jeanne-Valentine Ulrich no elemento central do relógio.
No torno de gravação, a famosa "mão" estava preparada para uma demonstração. A delicadeza do resultado final contrasta com a dureza e dificuldade de gravar em titânio. Cada entalhe é um golpe áspero com uma margem de erro nula. Uma batalha artística entre a delicadeza da intenção e a resistência dos materiais.
Dizemos nós que "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura". Essa expressão aplica-se perfeitamente à carreira de Jeanne-Valentine Ulrich. A gravadora suíça percorreu um caminho silencioso e perseverante, adquirindo competências até chegar a um ponto em que finalmente a pedra dura começou a ceder. Talento tem de sobra, o merecido reconhecimento cresce, e o futuro pertence-lhe.
Jeanne-Valentine Ulrich: profundamente talentosa e profundamente humana.
Para finalizar deixo duas sugestões:
A primeira é a descoberta mais profunda do trabalho de Jeanne-Valentine Ulrich aqui.
A segunda é um pequeno livro sobre mitos e biografias intitulado "Lenda, Mito e Magia na Imagem do Artista" de Ernst Kris e Otto Kurz.